70 anos de Vidas Secas

segunda-feira, novembro 10, 2008 0 comentários

"Você é um bicho, Fabiano"

Em 2008, Vidas Secas, do escritor alagoano Graciliano Ramos, completa 70 anos de sua primeira edição. A obra é um marco na literatura brasileira por reproduzir a luta pela sobrevivência do sertanejo nordestino, além de fazer uma crítica social, abordando as causas da miséria e do flagelo da estiagem.

O romance narra a jornada de uma família de retirantes. Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, seguidos pela cachorra Baleia, vagam de fazenda em fazenda, percorrendo quilômetros de terra rachada, em busca de um pedaço de chão que lhes dê o que comer. São criaturas jogadas ao extremo da miséria, vestem-se com roupas sujas e rasgadas, não possuem casa, comida, saúde nem futuro. Como se já não fossem muitas as adversidades, os retirantes ainda sofrem com a prepotência do fazendeiro enganador e com as injustiças de uma estrutura sociopolítica decadente. (Fonte: CEREJA, William Roberto. Literatura brasileira. São Paulo: Atual, 1995)

As condições desumanas de vida colocam no mesmo nível pessoas e animais. Fabiano e sua família não dominam a linguagem verbal. Falam pouco e se comunicam mais por grunhidos, assim como os bichos.

"— Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.(...)

Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:

— Você é um bicho, Baleia.

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.

(...)

Às vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas."

(Graciliano Ramos. Vidas Secas. 103ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19-20; 36)

Em 1963, o romance foi adaptado para o cinema, assinado pelo diretor Nelson Pereira dos Santos. Foi o único filme brasileiro a ser indicado pelo British Film Institute como uma das 360 obras fundamentais em uma cinemateca.


Cena do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Fabiano, Sinhá Vitória e Baleia: a fuga da seca.